EDITORIAL

SOMOS MUITOS...
Uns como civis,
outros militares,
de todos os continentes
e cores, feitios,e ideologia
, de um lado ,de ambos, ou
do outro lado da barricada,
ou de nenhum dos lados...
Este é o espaço de todos os que
em algum tempo da sua vida comungaram passageiramente, ou enraizadamente do solo e cultura do ex-ultramar lusitano...
do brasil a timor, de macau à india...
Na crisa do sol e da chuva,
da lua e da brisa do mar,
comungamos todos esse olhar sem fim
de esperança na Humanidade...
DESERDADOS DA FORTUNA...
Refractários talvez...
DESERTORES? NUNCA !!!

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quinta-feira, 20 de agosto de 2009

para reflectir... O QUIPOMBO -1961

http://quitexe.blogs.sapo.pt/

O Kipombo


Estamos em Agosto de 1951 e os povos das sanzalas começam a descascar o café segundo o método tradicional no pirão. Em algumas sanzalas foram instalados, mais tarde, descascadores mecânicos accionados por motores de explosão que tornam a tarefa mil vezes mais rápida.

O café, depois de apanhado no cafezal, chama-se cereja e é de cor verde. À medida que vai amadurecendo fica com tons variados, do amarelo ao vermelho vivo. A cereja é espalhada nos terreiros de modo a ser mexida três vezes ao dia para não fermentar e secar mais rapidamente. Conforme vai secando vai ficando com um tom castanho escuro, passando a designar-se por “mabuba”. Quando bem seca pode ser armazenada para posteriormente ser descascada ficando, finalmente, o grão de café.

Em 51 a produção indígena era ainda processada nas sanzalas com o pirão pois os comerciantes só compravam café limpo, que era ensacado em sacos de juta de 80 Kg. Todas as manhãs caravanas de indígenas, velhos, homens, mulheres e crianças transportam à cabeça sacos e quindas de café vindos de diversas sanzalas, espalhando-se pelas três casas comerciais conforme as suas simpatias.

A estes agricultores eram distribuídas umas latas de leite vazias que serviam de medida para, cada um em sua casa, saber os “quilos” de café que trazia para venda. Essa lata, quando cheia de café, pesava 1200/1300 gramas, tendo sido baptizada por um comerciante dos lados do Toto, de nome Pombo, com o nome de Kipombo, como equivalente, em volume de café, ao Kilograma. Era esta a medida que estava generalizada por toda a região do café.

Para o indígena o dinheiro pouco valor tinha, o que contava era o que levava de géneros para casa. Assim, se trouxessem 100 kipombos o comerciante reclamava se não pesassem pelo menos 120 Kg. Como o preço do kipombo era estabelecido em função do preço por quilo pago pelos exportadores em Luanda e, por vezes com a concordância das Autoridades Administrativas, o comerciante tinha no mínimo, para além da margem de revenda, uma margem de 200gramas por quilo de café. Esta margem era retribuída, em parte, ao vendedor , através do obrigatório mata-bicho que consistia em dar o mungo (sal) o vigié (peixe seco), a melele (tecido para o quimone e a tanga), o sabão, a missanga e o lenço.
Tomando como exemplo a família do Velho Canzenza, nove mulheres e já não sei quantos filhos, o mata-bicho a dar era grande, mas a quantidade de café comprada, à volta de 150 quilos dava para que todas as mulheres e filhos de diversas idades voltassem contentes para a sanzala. O Velho era contemplado com uma garrafa de aguardente.

Podemos dizer que o “marketing” do comerciante se baseava na “oferta” do mata-bicho, na sua qualidade e abundância. Por graça, refiro que uma das alcunhas de um comerciante era Mandafama, porque, depois de dar o mata-bicho dizia para o negro: -“ Manda fama! Manda fama!” (espalha a fama do meu mata-bicho).

Um dia, quando paguei ao Velho Cazenza, contando as notas de angolares perguntei-lhe:

- Está certo?
- Está certo, patrão!
- Como é que Canzenza sabe que está certo se não sabe de contas?
- Mas eu sabe, patrão...

E vai-me explicar: tinham-se feito 7 pesagens de café; 7 sacos levando cada um 20 kipombos a 10 angolares o que totalizava 1400 angolares.

Então o velho manda as mulheres porem lado a lado cada um dos sete sacos e diz-me:

- Patrão, troca o quitar (dinheiro) em notas cama, cama (cem, cem).

Assim fiz, e então o velho agarra nas notas e começa a pôr, em cima de cada saco, duas notas de cem. Fez o mesmo com todos os sacos e, quando chegou ao fim, lá estavam na mão as duas notas para cobrir o último saco.
- Como vês patrão, está certo. Se faltasse dinheiro as notas não chegavam para cobrir todos os sacos. Chegaram, está certo!

Fiquei de boca aberta, eles bem sabiam quando estavam a ser roubados pelos comerciantes sem escrúpulos.

Feitas as contas o Velho diz para ir ao livro para pagar parte do débito. Então começa a descrição:

- No dia tal foi o mala peixe.
- Está certo patrão.
- No dia tal isto e aquilo, e ele ia confirmando.
- Soma patrão!

Se totalizava, por exemplo, 1500 angolares ele dava mil e ficava a dever quinhentos, o que era bom sinal porque se pagasse tudo era por que deixaria de ser freguês. Depois ia gastar o resto do dinheiro nas compras mais necessárias, não esquecendo os milongo (remédios) para o lombriga, para o diarreia, para o dor de cabeça, o mata dores, e mais ao ouvido dizia-me:
- Oh patrão arranja comigo milongo pró guso (remédio para a impotência), também havia!

Mas, não se pense que os únicos explorados eram os indígenas. Os comerciantes eram, afinal, os intermediários entre estes e os grandes exportadores de Luanda, que enriqueciam à custa dos pequenos comerciantes que, sem possibilidades económicas, eram obrigados a vender o café que compravam numa semana, para arranjarem dinheiro para comprarem na semana seguinte. Os exportadores vão enchendo os grandes armazéns que têm em Luanda com café comprado a baixo preço na altura da colheita. Quando a oferta é muito superior à procura o comerciante do mato tem que se sujeitar à chantagem dos preços que lhe impõem e, também aos mil e um defeitos atribuídos na classificação do café: muito bago furado, bago miúdo, muita humidade, muitas impurezas. Todos nós sabemos que nos próximos três a quatro meses, quando os grandes barcos começarem a carregar os milhares de toneladas de café que os exportadores têm armazenadas, a situação inverte-se, a procura é maior que a oferta e os preços disparam. E, então o pequeno comerciante toma consciência de que quem mais lucrou foram os grandes exportadores que, em Luanda, sentados a uma secretária, exploram os homens do mato que no interior de Angola, em situações de isolamento, sem qualquer conforto, vão em convívio fraterno, porque não dizê-lo, com os africanos, criando um modus vivendi de interdependência.
publicado por Quimbanze às 22:37link do post comentar adicionar aos favoritos
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Terça-feira, 23 de Outubro de 2007
A repressão
Após o ataque ao Quitexe as populações das grandes sanzalas como o Catulo, Dambi Angola, Ambuíla e o Quitoque permaneceram nelas, pacificamente. Os carros circulavam no seu interior, sem qualquer hostilidade. Há como que uma pausa para avaliar a situação pois creio que, embora todos os pretos estejam ao corrente do que se passa , inicialmente, só uma pequena parte terá aderido à UPA e ao ataque ao Quitexe e às fazendas. A UPA só conseguiu alguns êxitos no primeiro dia dada a surpresa, pois se estivessem as fazendas alertadas, tudo tinha sido diferente. As autoridades estavam, afinal, a par do que iria acontecer, dia e hora, como posteriormente se veio a saber. Porque não alertaram as fazendas e as povoações da iminência do ataque? Porque deixaram morrer tantos brancos, mulheres e crianças sem saberem por que estavam a ser esquartejados à catanada?

A UPA, à semelhança do que se passou no Congo Belga, confiou que os brancos, cheios de medo, abandonassem em fuga as suas terras, o que, por pouco não conseguiu. Só, talvez a presença de largos milhares de contratados do Sul, agora todos classificados de Bailundos o terá evitado. Só na área do Posto do Quitexe haverá quatro ou cinco vezes mais Bailundos que toda a população local africana. Por variadas razões estão totalmente ao nosso lado e, assim evitam que a actividade cafeícula paralise. E foi, graças ao valor económico do café e à permanência dos Bailundos nesta região, que a maioria das fazendas, entregues a gerentes e empregados brancos conseguiu manter-se em laboração. Estes, à noite, ainda ajudavam na defesa do Quitexe. Os comerciantes abalaram para Luanda; sem os povos das sanzalas nada mais os prendia aqui: não havia a quem vender, nem a quem comprar.

A repressão que se segue é brutal. Não se procura uma alternativa. Entretanto, eu e o Martins Gonçalves propomos tentar entrar em contacto com as sanzalas, mas a nossa sugestão é liminarmente excluída: não havia ordem para isso.

As sanzalas são metralhadas e incendiadas. Homens, mulheres, velhos e crianças iniciam a debandada; levam consigo os poucos haveres que conseguem reunir. O seu destino são as matas impenetráveis da Serra do Quimbinde, da Serra do Quitoque, do maciço da Serra do Cananga. Vão, quem sabe, à procura dos lugares dos seus antepassados, de onde, um dia, foram obrigados a sair, pela força, para se fixarem junto às estradas que correm no sopé das serras e dão acesso aos Postos Administrativos e, agora, às povoações da população branca e às sanzalas africanas.

A morte de todos os pretos da região, sentenciada pela Pide, braço da repressão do governo, secundada pelos agentes das autoridades administrativas e outros mais sedentos de vingança, conseguiu, em poucos dias destruir o equilíbrio simbólico que existia entre o poder das autoridades portuguesas e o poder africano do sobas.

O bom relacionamento dos comerciantes com os povos das sanzalas era fruto de uma actividade onde os interesses mútuos se cruzavam. Para o comerciante do mato é do bom relacionamento com os nativos que depende a sua própria sobrevivência e foi este equilíbrio estável que foi irremediavelmente perdido. E, assim, de maneira pouco política e irresponsável, as autoridades portuguesas entregaram à guarda da UPA, grupo armado de assassinos ao serviço dos interesses americanos, os povos com quem convivemos durante centenas de anos. Este convívio nem sempre foi feito da melhor maneira, mas mais por culpa das autoridades que preferiam, em vez do respeito mútuo, incutir em terra alheia a submissão e o medo, esquecendo os valores do humanismo cristão que tanto apregoavam.

Só muito mais tarde adoptaram a política da “psico”, tentando atrair as populações africanas a aldeamentos modelo guardados pelos “flechas” e visitados pelos altos governantes, como exemplo da convivência com os povos nativos.

Quitexe 61 - Uma Tragédia Anunciada, João Nogueira Garcia